segunda-feira, 28 de setembro de 2020

CALE – A DEUSA MÃE DOS GALAICOS

 

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As tribos, na Antiguidade, costumavam ter um deus ou deusa fundadora, os mais velhos, aqueles que deram a origem a elas. Os galaicos não seriam diferentes. Os nomes de Portugal e Galícia levantaram todas as hipóteses a esse respeito, da deusa-mãe, a mais velha dos galaicos; por mais que haja duas teorias sobre a origem dos nomes dos dois lugares, elas por si só, a meu ver, conversam entre si.

A primeira, na qual esse texto se baseia fortemente, é a de que Portugal seria Porto de Cale, e a Galícia, antigamente, Callecia, viria dos filhos de Cale. A segunda teoria não descarta a primeira, pelo fato de se basear que o termo cale, seria “pedra dura”, devido ao terreno granítico desses lugares e, como mostrarei a seguir, a pedra dura, a terra e suas rochas, são o reino da deusa Cale.

O folclore é um dos lugares em que as memórias de muitos deuses antigos ficaram, sejam eles tornando-se em santos ou em seres encantados, estes muitas vezes com teores maléficos, associados ao diabo. É no folclore galego e do norte de Portugal que iremos encontrar a figura da nossa deusa em questão, extremamente elaborada, com várias matizes. Então quem é Cale no folclore?

É ela a Moira velha, que carrega grandes pedras por todo o território que antes compreendeu a Callecia. Ela é a Meiga que lança feitiços e causa terror na comunidade. Ela é o que de mais antigo e pulsante prevaleceu dentro do folclore dos antigos celtas da Península Ibérica.

As Moiras são seres de imenso encanto e terror na Galícia e norte de Portugal. Elas trazem em suas aparições duas formas: em uma delas aparecem como a moça bela ruiva ou loira, que penteia os cabelos e pede para ser desencantada por meio de um desafio de coragem e honra; e na segunda aparecem como uma velha, a qual carrega as pedras para construção de megalitos, junto com um fuso ou uma criança, cesta e cântaro de leite, e ela também cria gado e o alimenta.

Centraremos primeiro na segunda aparição, fazendo uma ligação da Cale ibérica com a deusa Cailleach gaélica. Esta também era carregadora de pedras e também tinha seu gado. Tem relação com as montanhas, como nossa Cale em forma de Moira, tem relação com as covas e os dólmens funerários, com as entranhas das montanhas, onde como a Rainha Lupa,( http://ocantodasuindara.blogspot.com/search?updated-max=2016-08-15T13:16:00-07:00&max-results=7 na época ainda tinha muitas indagações e ainda não tinha descoberto os fatos de agora), mantém seu castelo e seus tesouros.

Cale aparece no antigo território galaico carregando imensas pedras na cabeça ao mesmo tempo que com seu fuso tece fios ou um vestido, em algumas lendas, ou em outros momentos carrega uma criança ou uma cesta, e também existem relatos em que carrega um cântaro onde bate o leite. Estas pedras que ela carrega serviram para construir dolmens, menires e paredes de diversos castros. As pedras também criaram assentos que são chamados de bancos das moiras.

Ela ainda é possuidora de riquezas em seu castelo subterrâneo. Dizem que ela pode dar ouro aqueles que demonstrarem coragem e honra. Ela é uma exímia criadora de gado; conta as lendas que ela alimenta e engorda até mesmo gado que não é seu, mas em troca disso pede que lhe tragam bons pedaços. A quebra do acordo pode levar a morte daquele que não cumprir.

Relatam que ela pode se tornar invisível, e apenas com o olhar pode dominar e matar os humanos. E, em uma das lendas de Finisterra, ela se cansa de viver e cria um dólmen para ser enterrada.

Na primeira aparição, ela é uma jovem muito bela, que aparece penteando os cabelos e tecendo o fuso, em uma fonte d’água ou dólmen, pedindo para ser desencantada por um homem; se ele conseguir, receberá uma botija de ouro, porém para isso ele tem que não ter medo da sua verdadeira forma. Então a bela moça se transforma em uma imensa serpente, que às vezes se enrola no homem, e em outras com uma flor na boca que deve ser coletada, e o desencantador, nos dois feitos, não deve sentir medo.

A aparição como jovem, no entanto, ao meu ver, é a transição dela com uma deusa da primavera, levando em consideração que a serpente, na Ibéria, tem a ver com o retorno da primavera, e se formos comparar com Escócia e Irlanda, no folclore destes, Cailleach troca as estações com Brighid, a deusa primaveril. Aqui temos essa troca da deusa velha, outonal e invernal, com a deusa jovem e primaveril, o desencanto dessa deusa, como a Brighid que é resgatada nas terras gaélicas. 

Diante de todos esses relatos, podemos considerar que Cale é uma deusa-mãe da terra, que carrega em sua figura o poder da vida, morte e magia. Ela é a deusa mais velha, a primeira, a que constrói a paisagem com suas pedras, guia o destino com seu fuso, alimenta os animais em suas terras, a criança que há de vir com seu leite, carrega os frutos da vida no seu cesto e o leite em seu cântaro. Ela também seduz homens para tê-los como seus servos, ao mesmo tempo que pode deixá-los ricos. Ela tem o poder de matar e encantar apenas com o olhar. Ela é a Meiga temida no norte da Ibéria. Ela é a Moira poderosa e encantadora. Aquela que foi jogada para o terror do folclore, quando o Cristianismo não a pode vencer.

Bibliografia:

IGREJAS, Luís Magarinhos. Sobre a Origem e Significado das Palavras Portugal e Galiza. Portal Galego de Língua. Galiza: 2005.

LLINARES, Maria del Mar. Mouros, Animas, Demonios – El Imaginario Popular Gallego. Editora Akal. Madrid: 1990.

ROMERO, Fernando Alonso. Las Moura Constructores de Megaliticos: Estudio Comparativo del Folklore Gallego Com el de Otras Comunidades Europeas.

terça-feira, 23 de junho de 2020

A Espera

Era ainda inverno. A primavera estava mais longe do que perto, mas ela apareceu ainda assim no meu caminho. Não vinha como a mulher jovem e primaveril que eu conhecia e tinha devoção. Ela vinha bem mais obscura, como se descansasse no seio da terra. Contudo era ela. Poderia reconhece-la em qualquer tempo e espaço, mesmo que seus rios agora fossem gélidos e me assustassem um pouco. Não eram os rios da fertilidade, eram os rios da passagem, e os lobos uivavam na planície.
Ela me pegou pela mão, sua lança e seu escudo ainda mais presentes, e caminhamos juntas de mãos dadas, como duas amigas. Ela me levou para seu monte, aquele de devoções antigas que se perderam na história. Eu fui, cabeça baixa, coração um tanto aflito. A mão que segurava a minha era quente, como a primavera que ela traria. Chegamos ao topo do monte, e a lua crescente nos cobria. E sentamos uma de frente a outra, ela tirou o capuz que cobria seus cabelos loiros. De repente, a tinha diante de mim como a conhecia; ela me sorriu, e lhe perguntei por que ela estava aqui tão fora de tempo.
“Às vezes, precisamos de um pouco de primavera no inverno. Precisamos ter a esperança de que as coisas irão passar, que a noite e o frio não durarão para sempre. Que os peixes voltarão a correr nos rios, os pássaros retornarão a fecundar a terra com seu vôo. E meus rios são mais do que fertilidade, eles são passagens. Passagens de um tempo para outro, de uma vida para a outra, pois tudo é um recomeço e a forma como vemos as coisas na maioria das vezes estão desfocadas. Eu renasço em você todos os dias. Renasço nas suas batalhas cotidianas, nas águas que correm em você em silêncio, no medo da partida, na espera da chegada. Eu guardo a entrada e a saída, e quando as batalhas se acirram, eu aumento a proteção das janelas e portas. E dou a mão para aqueles que fazem a viagem pelo rio, os levo no meu barco, como sua barqueira, os acompanhando para o outro lado, para o outro tempo, onde a vida se renova e as batalhas são vencidas. O tempo é sempre meu tempo, eu não só inicio um ciclo, eu o fecho também.”
Lágrimas rolaram pela minha face diante dela. Eu sempre me sinto uma criança diante dela, minhas proteções podem ser desarmadas, e posso ser apenas eu. Deitei a cabeça em suas pernas, ela me cobriu, como outras vezes já o fez, com sua capa de pele de cabra, e ali eu poderia descansar até que a primavera volte, e ela, Nábia, possa florir novamente os campos e inundar de fertilidade a terra. À espera de que possamos sair para as nossas justas batalhas, para o cultivo da vida e pastoreio dela. 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Ilurbeda, a Deusa Celta Vetã


Depois de muito tempo sem escrever nada, retomo os textos do blog com uma deusa dos Vetões, tribo de origem celta que ocupou a região de Castela e Leão, na Espanha, e Trás-Os-Montes e Beira Interior, Portugal. Os Vetões ficaram muito conhecidos pelos berrões, esculturas de animais feitas em tamanhos reais que têm bons exemplos na região transmontana; sobre elas pairam muitas dúvidas e levantam-se a hipótese de ali ter havido um culto zoomorfo, porém isso é assunto para outro texto. 
Se sobre os deuses galaícos e lusitanos temos poucos registros, ao falarmos de deuses vetões os registros são menores ainda. Sendo assim o que temos sobre a deusa em questão são diversas aras encontradas em vários lugares da Península, com quantidade significativa na área vetã. As aras já são de um momento pós-romano na região, deste modo comportando as suas devoções e anexações dos deuses locais ao seu culto.
Começamos pelo significado do seu nome, o qual traz, em si, a união provável de duas línguas: vasco e celta, o que não é de se estranhar, uma vez que os grupos étnicos próximos não viviam isolados um dos outros e muitas vezes cultura e língua se misturaram. 
Ilur – Vasco – Ili – Cidade/Vila; ou de Ilurri – Espinheiro; ou Lur – Terra (Para mim o último é o mais considerado).
Beda – Bedo – Celta – Mina, Pedreira, Cova ou Vala. / Proto-indo-europeu. B’ed – Escavar.
A afirmação de ser uma deusa celta, não vasca ou ibera, se dá pelo fato de seu culto estar em grande parte na região vetã, especialmente em Salamanca, onde foi o local que os arqueólogos mais encontram aras, e nelas muitos dedicantes com nomes vetões, como “Reburrus”. 
Contudo, o culto à Ilurbeda se espalhou por Coimbra e Sintra, graças às migrações por conta da mineração, e assim começamos a entrar na identidade da deusa abordada.   
Ilurbeda é uma deusa de devoção daqueles que trabalham nas minas. Além do significado etimológico nos levar a essa conclusão, os achados arqueológicos também nos fazem a entender o mesmo. As devoções eram deixadas nesses locais, bem como ferramentas mineiras de ferro eram entregues em devoção à Ilurbeda. Contudo Ilurbeda não é uma ferreira como Bríghid, ela está relacionada ao trabalho duro das minas e das pedreiras. Ela é aquela que ajuda escavar, a chegar ao fundo, a encontrar os metais. 
Entretanto, Ilurbeda não se limitou apenas ao culto das minas. Muitas evidências nos levam a crer que ela também é senhora dos caminhos e dos viajantes que precisam passar por montanhas tortuosas. Em Narros de Puerto, Ávila, foi encontrado na Igreja de Nuestra Señora de la Asunçión, um antigo santuário romano, onde em duas aras ela aparece citada junto aos Lares Viales. Isso por si só não seria evidência suficiente, porém muitas devoções foram encontradas nos caminhos das montanhas, fato que pode ter ocorrido devido a jornada difícil da migração, o que faria com que os mineiros acabassem dando-lhe também essa função, da salvaguarda das suas jornadas, das viagens daqueles que migram, aquelas que são difíceis e de caminhos tortuosos.
A maioria dos dedicantes do Druidismo não é, hoje, trabalhador de minas ou pedreiras, porém não somos tantas outras coisas que o homem da antiguidade foi, e nem por esse motivo deixamos de cultuar os deuses antigos, relacionados às profissões antigas. Deste modo, Ilurbeda pode ser a nossa guia a descobrir os nossos talentos escondidos, aqueles que precisamos cavar profundamente para encontrar. Ela pode ajudar a encontrar os nossos tesouros, os dos outros, e até mesmo do nosso mundo. Ela pode auxiliar-nos em momentos difíceis, em que os caminhos parecem muito complicados de passar. Como também pode nos ajudar a superar as mudanças, as migrações forçadas, o ter que deixar a nossa terra por outra, seja o tal no âmbito físico ou espiritual.
E se pudéssemos colocar Ilurbeda dentro da roda dos festivais, para comemorarmos em comunidade, em que momento seria? Ter certezas sobre os deuses celtas da Península Ibérica raramente é possível. Partimos muito mais de intuição e análise de suas características, pois não temos registros dos momentos de celebração da maioria, salvo algumas exceções. Então, postos tais esclarecimentos, eu a celebraria no festival da colheita, no Lughnasadh, por estar relacionado ao comércio, às trocas, e Ilurbeda, com suas minas e guardiã dos viajantes, está relacionada também a isso, além de ela preparar as minas, como Tailtiu preparou a terra para a plantação. Ilurbeda é a terra que deu as ferramentas para os homens, como Tailtiu deu o alimento, logo é momento de lhe agradecer pelo feito. 

Bibliografia:
BARRANCOS, José Luís Gamalho & SOBRINO, Maria dela Rosário Hernando - Un Santuário  Romano en Narros del Puerto, Ávila (Conventus Emeritensis) in: Ficheiro Epigráfico (Suplemento de Conimbriga) - pág 336 a 346. Coimbra: 2004.
CAMPOS, Ricardo - Ilurbeda, a Ara de Faião (Sintra, Portugal) in: Revista Palaeohispanica 18 - pág 25 a 40. Zaragoza: 2018.
PEDREÑO, Juan Carlos Olivares - Teónimos y pueblos indígenas hispanos: los "Vettones" in: Iberia: Revista de la Antigüedad 4, pág - 57 a 70. La Rioja: 2001.
SOBRINO, Maria dela Rosário Hernando - A Propósito del Teónimo Ilurbeda. Hipóteses de Trabajo in: Revista Veleia, 21, pág - 164 a 205. País Vasco: 2005.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Deus Vaélico – A Magia na Iniciação Guerreira na Ibéria Celta




Este texto fez parte, inicialmente, da minha palestra na Convenção de Bruxos e Magos de Paranapiacaba, esse ano, na sala Druídica. E agora o exponho com pequenos acréscimos aqui.
A Península Ibérica, antes da chegada dos romanos, era habitada por diversas tribos, cada uma com suas particularidades, culturas e deuses. A maior parte do conhecimento que temos dessas tribos não é por nenhuma forma de registro escrito por elas mesmas; podemos entende-las pelos achados arqueológicos e escritos do dominador romano, e posteriormente com o folclore popular e a cristianização dos costumes. Então este é um trabalho longo e muitas vezes inconclusivo, formando um mosaico de possibilidades.
O deus que tratamos nesse momento foi cultuado pela tribo dos Vetões, de cultura celta, que habitou a região que hoje compreende as regiões de Castilha e León, Extremadura e o leste de Portugal. O culto a esse deus tem suas marcas na região de Ávila (que também foi o lugar de maior concentração dos vetões), encontradas no município de Candelada, junto a uma necrópole com marcas de culto a Vaélico, e também em uma ermida de uma localidade chamada Postoloboso, hoje dedicada a um santo cuja principal função é curar cães raivosos.
Esses achados nos trouxeram algumas marcas de quem seria esse deus: as aras votivas de Candelada apontam para um deus relacionado à cura e o vaticínio; porém essas mesmas aras nos mostram um culto mais recente, da época romana, em que Vaélico, por motivos óbvios de controle e dominação, havia perdido suas principais características.
Sabe-se que as confrarias guerreiras da Ibéria, tanto calaicas-lusitanas quanto vetãs, possuíam uma iniciação guerreira, e que os membros dessas confrarias tinham o costume de passar uivando e assustando os acampamentos romanos. Portanto, os estudos para entender Vaélico e seu papel na Ibéria Celta, anterior à chegada dos romanos, não podem deixar de passar pelo simbolismo do lobo e os atos iniciáticos dessas confrarias.
Qual é a relação de Vaélico com os lobos? A principal é que seu nome diz exatamente “Deus Lobo” ou “O Ululante”. O lobo é um animal que teve sua imagem relacionada pelos celtas e outras tribos indo-européias à figura dos deuses guerreiros, ao Submundo ou Outro Mundo, à noite escura, à magia e transmutação. Portanto fica-nos muito claro que Vaélico, mais que apenas um deus da cura e oracular, é o deus do Outro Mundo celta dos Vetões, aquele que conduz os guerreiros ao descanso final, o deus da magia e transmutação, e o deus do furor da batalha, aquele que reúne a alcatéia e a mantém unida, portanto o deus da iniciação guerreira.
Mas o que de fato acontecia nas iniciações guerreiras dessas confrarias? O que se sabe é que esses guerreiros iniciados ganhavam uma posição de elite em relação aos outros guerreiros, que eles se ausentavam por muito tempo do resto da tribo para passarem por essa iniciação que, ao que tudo indica, incluía imersões em saunas, ervas, estados alterados de consciência; um verdadeiro processo mágico em que o homem incorporava em si o furor do lobo, a licantropia.
Sauna iniciática vettona de Ulaca. Solosancho, Ávila.

A partir desse momento passavam a viver vidas mais ascéticas, com pouca comida, enfrentando as adversidades do clima, e assim endurecendo o corpo físico; também passavam a vestir cores escuras, relacionadas à noite, bem como usar objetos relacionados aos lobos, como diversas fíbulas encontradas nos achados arqueológicos de Numância (região à margem do Rio D’Ouro), e

Fíbula celtibérica de cabeça de Lobo. Garray (Soria)
um provável uso de máscaras de lobo, peles e dentes. E passavam a fazer parte de um alto escalão de guerreiros, guerreiros especiais.

Guerreiros com máscaras de lobo frente a um cadáver de outro guerreiro ao que devoram os abutres. Estela de Zurita
Se voltarmos os nossos olhos para os outros povos celtas, encontraremos lendas sobre confrarias guerreiras de alto escalão, como os Fianna e os Cavaleiros da Távola Redonda. Eram guerreiros iniciados em mistérios aos quais os guerreiros comuns ignoravam, o que nos leva os aproximar aos guerreiros de Vaélico. 
Para finalizar, esses guerreiros iniciados, os quais podemos chamar de “guerreiros mágicos”, nos fazem levantar algumas hipóteses filosóficas: se Vaélico é o deus do Outro Mundo, que no mundo celta está relacionado às águas, o passado e aos antepassados, podemos pensar que o verdadeiro guerreiro mágico encontrava-se com Vaélico entrando profundamente em seu inconsciente, conhecendo profundamente seus medos, vencendo-os e conhecendo suas potencialidades e indo muito além delas. É um homem que alcançou a Soberania, pois se conhece profundamente. Sabe fazer bom uso dos seus dons e da sua fúria, usando-a com propósito e direcionamento, reconhecendo a necessidade do bem da Tribo, como é o caso na alcatéia de lobo. Ele morreu para o antigo homem e renasceu sob as águas e a dedicação ao Deus Lobo.
Hoje vivemos em uma sociedade diferente da dos Vetões, dos antigos celtas, mas nem por isso deixamos de ter nossas batalhas; elas são simplesmente diferentes, porém encontrar-se com os ensinamentos de Vaélico ainda é muito importante. Nas nossas batalhas ainda precisamos conhecer profundamente a nós mesmos, saber quem realmente somos, onde começa o outro e termina o eu. Precisamos do ensinamento do lobo que nos dá a energia necessária para lutar pelas nossas crenças e ideais, como também o pensamento do bem maior, do lobo que não trabalha somente para si, mas que pensa também na sobrevivência da Tribo, porque sabe que seus atos ressoam em um âmbito maior. E para tudo isso não é demais dizer que podemos ser um guerreiro soberano de Vaélico, o qual guarda a honra, a lealdade e os mistérios da vida e morte em todos os âmbitos de sua existência, ou podemos ser soldados, que seguem sem consciência, obedecendo ordens alheias apenas pelo ato de sobreviver ou pelo seu interesse momentâneo.

Fontes Bibliográficas:    
ALMAGRO-GORBEA, Martín & SANCHÍS, Jesús R.Alvarez – La ‘Sauna’ de Ulaca: Saunas y Baños Iniciáticos en el Mundo Céltico. Cuadernos de arqueología de la Universidad de Navarra, Nº 1, págs. 177-254. Navarra, 1993.
GARCÍA, Gonzalo Rodrígues – La Figura del Lobo y la Tradición Guerreira de la Hispania Céltica. Toledo, 2013;
MORENO, Eduardo Sánchez – Aproximación a la Religión de los Vetones: Dioses, Ritos y Santuarios.  Studia Zamorensia, Nº. 4,  págs. 115-147. Zamora, 1997.





sexta-feira, 23 de junho de 2017

Solstício de Inverno: A criança nasceu no mundo moderno.


Para os povos antigos as estações solares eram de suma importância, afinal elas estavam relacionadas diretamente ao ciclo da colheita e o bem-estar do rebanho, por isso o culto ao sol era totalmente significativo e vivido.
Hoje já não vivemos essa realidade,  a sociedade moderna, nem mesmo aqueles que plantam e colhem, pois é mais lucro, do que ligação real e sacra com o alimento, está ligada a realidade física e ritual dos ciclos solares.
Então qual é a importância real da chegada do solstício de inverno para o paganismo moderno?
Pensando na simbologia da mãe que perde seu filho pelas forças obscuras e invisíveis e o tem de volta após sua intensa busca, trazendo a verdade à tona, que ela não o matou, foi lhe tirado, ela a deusa égua, a força da soberania da terra, que as forças também brotam do mundo mais além; podemos entender que esse retorno solar, é o retorno do nosso conhecimento profundo sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca, após o mergulho no interior do Samhain, na reflexão profunda do nosso passado e das heranças familiares,  a luz solar que retorna traz a claridade sobre o que somos, qual é a nossa verdade, a nossa busca e o que sustenta a nossa soberania.
E, a partir disso estaremos prontos para no fim do inverno, quando a criança solar já estiver maior, seguir essa força soberana que move as nossas vidas, plantar a nossa parte, soando assim a nossa canção com o todo harmoniosamente.

domingo, 28 de agosto de 2016

De jogos, moradas e amores


              Estar ali novamente já não era surpresa, porém a colina estava diferente; havia muitos jovens, um pouco adiante de mim, jogando um jogo de tacos que eu não entendia muito bem. Fiquei de pé olhando, eles não pareciam me ver, afinal, eu não era do seu tempo e espaço, comecei a me sentir uma espécie de invasora.
             " Gosta de jogos?"
             Assustei-me com a pergunta e ao meu lado estava ele, não mais menino e nem tão jovem, mas muito longe de ser velho, bem próximo do início da vida adulta, mas os olhos quentes e brilhantes e o sorriso eram do menino, como se ele sempre o carregasse em si, como se o menino fosse eterno.

              " Já gostei, hoje não tenho tanta certeza"
              " As pessoas se revelam bastante nos jogos, não há como se esconder quando se joga. Jogos físicos, jogos de palavras. Fazem pactos ou os quebram, aprendem ou não, são justas ou injustas. A única coisa que não dá para ser em um jogo é não ser você mesmo. Não gosta mais de conhecer a si e as pessoas, menina? Então não precisa mais de tanto sol?"
               "Não sei, eu nem sei o que estou fazendo aqui." E ele riu, riu muito, me fazendo rir também.
               " Como é engraçado o não saber, porém ainda mais é o pensar que sabe. Vamos! Quero te mostrar algo."
                E o acompanhei em uma caminhada não muito longa, havia tantas árvores frutíferas e água corrente, e o sol era alto e claro, mas sem queimar. Paramos no alto de uma colina, de onde se via uma construção circular de pedra, muito antiga.
              " Há coisas pelo qual se lutar, menina, sua identidade e sua morada são uma delas, essa é a minha morada, tive que lutar por ela, mas antes tive que saber quem sou, e sabendo quem sou, o outro não teve como negar o que é meu por direito. Esperteza? Talvez. Mas o que é nosso, onde nossa essência nasce e descansa, ninguém pode nos tirar. Descubra sua morada, descubra onde quer nascer e descansar. E continue a jogar."
              Os olhos dele brilhavam bastante, tanto quanto o sol ou os olhos de uma criança feliz descobrindo o mundo. E isso me aquecia e sorri.
              " Você muda rápido e com frequência." Comentei e ele me olhou.
              " E você não? Há sempre algo a que se desejar, sonhar e proteger. Há sempre um amor no caminho da vida, que aparece como um doce sonho e por ele devemos quebrar o determinante e se transformar, por ele ser de nenhum espaço e ser de todos. Mergulhar, ficar e alçar voo. E um amor assim é a esperança que acalenta os corações e por ele se monta exércitos, por ele se luta e busca a verdade. E deve ser escondido da destruição, deve ser protegido na estufa, com luz solar, das ambições e injustiças, porque essas sempre estarão à espreita tentando o sufocar e o matar. E eu, menina, estou aqui quando a esperança se acaba, quando o amor e os sonhos estão em risco. Sou o sol sempre jovem, sempre menino, em um riso e uma doce canção. Sou Óengus Mac Og."
             E não mais menino ou jovem, era um cisne que voou no horizonte, e a gratidão cobria meu coração. E estava de volta no meu tempo e espaço, mas sabendo que espaços e tempos são voláteis. E que algo dele brilha em mim, brilha em todos.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Descendência

            Não me surpreendi por mais um dia parar naquela mesma campina e vestida com aquelas roupas que não eram as minhas e no tempo que não era o meu, já esperava o menino aparecer com suas bochechas coradas e seus olhos quentes, mas ao invés dele veio a mim um rapaz, com os mesmos olhos, traços e gestos do menino; era ele sem dúvida, trazia na mão uma harpa dourada e sorriu sentando-se à minha frente como no dia anterior.
              " Está diferente hoje, crescido." Eu lhe falei.
             " São tão ligados à forma, mas fico feliz que já me reconheça, esse é um grande passo, um passo para a essência."
              " Linda harpa! É um instrumento com um dos sons mais lindos, como se não tivesse sido criado por humanos"
               Ele sorriu e pôs-se a tocar, e a melodia era de imensa doçura, nunca ouvira nada igual, o que torna difícil descrever por não haver comparação com nenhuma outra no meu mundo conhecido, nem no canto dos pássaros mais melódicos, apesar de lembrar muito a beleza do canto dos pássaros, porém de nenhum que de fato existisse. E a sensação que me causou também não era tão simples de ser dita, entrei em estado contemplativo, de plena beleza, como se algo nascesse dentro de mim, algo como o amor nos primeiros dias. E o sorriso e as lágrimas se misturaram na minha face.
             " Esse é um dos papéis da música, tocar os sentimentos de tal forma que seja algo primeiro. Meu pai também tem uma harpa, a dele toca as estações, as muda, as cria. Faz o mesmo com os sentimentos, com uma melodia para se alegrar, chorar e sonhar. Parecemos muito com os nossos pais, o nosso modo é apenas a interpretação da forma que eles nos deram. Meu pai dá a abundância da terra, eu dou a abundância da alma. Minha mãe nutre a terra, eu, a alma, ela é um rio, assim como eu, pode ser a vida, como a morte. Depende de que lado do rio você está. Ou crer que o amor, os sonhos e a esperança só tem esse lado encantador da bela harpa? Quando eles transbordam, às vezes eles matam, matam para nascer, não há uma face sem a outra. Quantas guerras não são capazes para minha realização?"

             Fiquei ali, parada, enquanto ele desaparecia, e em tempo, eu voltava para o agora.

Continua...