sexta-feira, 22 de julho de 2016

A Rainha Loba, Luca, Lupa ou Lupina


A rainha Lupina certamente é uma das personagens míticas da Península Ibérica que mais me intriga, como se ela movesse a canção da minha alma, e este é o motivo principal de eu escrever esse texto. Outro ponto é o de que, como estudante de Druidismo, essa lenda galega traz em si muitos elementos da antiga espiritualidade celta na Ibéria, o que pretendo deixar claro no decorrer do texto. Como uma figura mítica, o conhecimento da rainha parte tanto de uma fonte literária cristã (combativa à fé pagã), quanto do imaginário popular, e ambos serão a base desse estudo. Porém algumas hipóteses pessoais serão abordadas, não como verdades absolutas, mas como possíveis ligações e questionamentos, pois alguns elementos simbólicos nos levam a elas.
Primeiro ponto: Quem é a Rainha Lupina? (também chamada de Loba, Lupa ou Luca, usamos aqui o termo mais utilizado)

O nome Lupina, em si, é um nome latino, mas o que não é suficiente para afirmar que ela seja uma entidade romana, pois com a chegada dos romanos na Península Ibérica muitos dos deuses e encantados das populações que ali viviam, sofreram latinização em seus nomes, como as janas, que passaram a se chamar de ninfas. Com o decorrer do texto, veremos que os simbolismos de Lupina, em grande maioria, são do imaginário dos celtas da Iberia.
A literatura clássica a liga ao culto jacobeu do Apóstolo Santiago, onde ela aparece como uma rainha real, devota da fé pagã, que possuía uma imagem do Iúpiter Celta (Júpiter na Península, parte de uma interpretatio de deuses celestes celtas, como Reue, o deus dos montes elevados), que dominava o poder da magia e que fez de tudo para que os discípulos não levassem o corpo do apóstolo ao Pico Sacro, onde em uma das covas estava o castelo da rainha. Porém com fé os discípulos vencem a rainha e ela se converte a fé cristã. Algumas coisas importantes a se dizer esse respeito: a Rainha inicialmente toma a figura de espécie de Meiga (mulheres que dominam a magia para “malefício” humano, a popular bruxa, uma designação própria da Ibéria), porém seus desafios aos discípulos, de controlar bois que se tornam touros selvagens e de vencer a serpente em que ela se torna, afirma sua condição de Moura (e não de Meiga). Outra evidência que reafirma isso é o de seu castelo estar ali, no Pico Sacro, lugar comum das moradas de mouras e mouros, além do fato de os discípulos lhe servirem vinho e de ela estar fiando quando chegaram.  O que vemos na lenda jacobeia não é nada mais do que a cristianização do Pico e a tentativa de apagar a fé pagã.
Nas histórias orais, coletadas no imaginário popular, ela realmente, aparece como uma moura encantada, uma rainha que possui um castelo em montes altíssimos, como o Pico Sacro (Santiago de Compostela) e o Monte Pindo (La Coruña), em castros e fontes. Ela faz trato com os humanos, fia, cuida dos rebanhos, guarda tesouros, tem servos e transforma-se em serpente, e aqui ela não se converte ao cristianismo, permanece com seu espírito selvagem de Rainha Moura.

As Mouras e Lupina

As mouras são chamadas também de princesas, moças e rainhas. Em base são seres encantados que cobriram e permanecem no imaginário da Península Ibérica, principalmente ao norte.
São vistas perto de covas funerárias, em covas dos altos montes e próxima das águas (em Astúrias e Portugal, as encantadas das águas também são chamadas de Xanas ou Janas, e tiveram ligação com a Deusa Nábia). Naturalmente são mulheres velhas ou jovens muito belas de cabelos ruivos ou loiros, e estão a fiar ou pentear os longos cabelos ou cuidando de rebanhos.
Essas encantadas possuem tesouros que oferecem aos homens, desde que não tenham medo do desafio proposto. Na maioria das vezes, as mouras se transformam em serpentes imensas e envolvem os corpos dos homens, e aqueles que não se amedrontarem receberão seu tesouro. As serpentes são um símbolo da mulher selvagem, a qual une em si a vida e a morte, a visão da Soberania que não pode ser simplesmente tomada, mas tem que ser conquistada. Só é digno de um tesouro quem não teme a morte e a Soberania feminina. Outro desafio é tirar uma flor da boca da serpente, o que também exige coragem.
Elas também fazem tratos com os homens em que sua prova é a fidelidade, pois têm que manter segredos ou cuidado com algo para então receberem o bem necessário, e a traição a uma moura naturalmente é punida com a morte.
A Rainha Lupina aparece também como essa mulher selvagem, que desafia os homens, até mesmo no caso dos discípulos do apóstolo, que tem que mostrar coragem para ter o que desejam. Em uma das histórias da cultura popular, ela alimenta os porcos de um pastor, os quais passam a engordar rapidamente. O pastor, curioso pela engorda misteriosa dos porcos, os segue e descobre que eles estão comendo no pasto de Lupina; ela lhe diz que, como recompensa, ele tem que lhe dar os melhores chouriços, porém a dona dos porcos, na hora da entrega, troca, propositalmente, os chouriços, e Lupina recebe o de menor qualidade, sendo assim punida por ela, devorada por serpentes e seu esqueleto permanecendo pendurado no castelo da Rainha.
A diferença real de Lupina com as demais mouras é a de que o seu epíteto de Rainha não é apenas uma delicadeza: ela de fato tem um castelo encantado, súditos, riqueza e rebanho.
Os simbolismos em Lupina e a possível ligação com Deuses da Ibéria Celta
   Partimos agora para entender os simbolismos dentro da lenda de Lupina e algumas hipóteses importantes a serem levantadas.
   O Pico Sacro é uma formação rochosa que fica no norte da Espanha, especificamente em Santiago de Compostela, Galiza. A lenda clássica nos conta que foi nesse local que os discípulos do apóstolo Santiago encontraram Lupina, uma rainha muito bela, muito branca e de cabelos ruivos. Enquanto ela fiava, eles lhes pediram bois para carregar o corpo até o alto do monte; eles lhe deram vinho e ela lhes deu os bois. Durante o translado, os bois se tornam selvagens touros, e aqui passamos a uma análise desse símbolo, os touros bravios. Um ponto a mais para ajudar-nos em alguns levantamentos de hipótese é o de que outra história sobre Lupina (essa não clássica, mas popular) nos conta que ela tinha servos que levavam seus touros a beberem águas no rio Ulla, o qual era parte da sua propriedade. Essa informação é muito importante, pois ela nos liga ao deus callaico-lusitano Bandua, cujo animal símbolo é o touro selvagem, e o rio Ulla foi uma região de sua devoção, portanto não podemos deixar tal ponto passar despercebido. Bandua era o deus dos ajuntamentos populacionais, ligado às batalhas e, se formos mais além, as aparições de Lupina perto dos castros e seus auxílios às comunidades não a distanciam dessas características de Bandua.
   A serpente, um dos símbolos de Lupina, foi um dos animais mais esculpidos em pedras e artefatos arqueológicos na Ibéria Celta, o que levou alguns pesquisadores acreditarem em um culto ofiolátrico na península, o que não se comprovou até hoje. Independente de um culto ou não da serpente, sua importância é sem igual no imaginário da Península. A serpente aparece como símbolo da fertilidade, vida, morte e magia. Ela é o elo da vida quando se mantém em círculo, talvez por isso, em algumas pedras, ela tenha sido grafada simbolizando a eternidade do amor. Sua troca de pele nos lembra o constante renascer; o seu veneno pode tanto ser a morte como a cura, e o viver embaixo da terra mostra a sabedoria do submundo.
   A crença de proteção ao entorno vital é perceptível tanto na Lúnula do Chão de Lamas, assim como nos torques. Sua relação com a morte está nos vasos funerários e nos dolmens.  Mas como já vimos nas mouras, ela é também o espírito da mulher selvagem e da Soberania, da mulher que conhece a sabedoria da vida e da morte, onde o prazer se encontra.
 Lunula Lusitana do Chão de Lamas

   O nome Lupina já foi analisado por muitos ângulos, mas não se chegou à uma conclusão definitiva, pois não houve uma confirmação de tal. Nossa ideia aqui é levantar uma hipótese que ainda não foi levantada, porém nem por isso podemos ignorá-la ou recear em fazê-lo, pois é uma hipótese entre tantas, que não tem pretensões de ser verdadeira ou única. Vamos a ela: a Península Ibérica era infestada por lobos e, se pudéssemos pensar em um animal símbolo da Ibéria, os lobos seriam eles. Mas qual o significado dos lobos para os antigos povos pagãos da península? O lobo era a fúria do guerreiro, e os soldados das confrarias uivavam como lobos assustando os soldados romanos. Acreditava-se que havia um rito iniciático nessas confrarias para despertar a licantropia, onde um homem carregaria em si a essência do lobo, e que esses guerreiros passavam por um processo mágico, tendo como iniciador provável o deus vetão Vaélico, Deus-Lobo, Senhor do Outro Mundo, dos mistérios da magia e do futuro. Então paramos para aproximar Lupina e seu nome dessa figura guerreira, e podemos colocá-la nessa relação como uma provável mulher que não só tinha em si o furor da batalha, como também era conhecedora dos mistérios do Outro Mundo e da magia. Ela era uma rainha encantada, uma figura mítica, não há registro algum da sua existência de fato, tinha bois encantados e dominava a magia, assim como a deusa irlandesa Medb.

Rainha Lupina: Uma Encantada ou Uma Deusa Perdida?
Essa pergunta é muito importante, apesar de não haver uma resposta de fato, apenas observações a se fazer. Dentro do folclore dos demais países celtas, vimos suas deusas se tornarem santas ou fadas. Há rainhas das fadas, mulheres feéricas que interagem com os humanos e até mesmo se casam com eles, e a eles também são postas condições a serem seguidas (que dizem muito sobre a soberania feminina) e a violação dessas condições trazem malefícios a esses homens. Por que na Península Ibérica seria diferente? As mouras são as feéricas da Ibéria, isso não me parece ser algo contestável.
Dentro do decorrer do texto, vimos a possível aproximação de Lupina com diversas divindades celtas. Seus símbolos são totalmente ligados à antiga fé pagã céltica e tem poucas relações com o misticismo romano, a não ser pelos costumes mesclados entre os dois povos.
A figura da Rainha Lupina, pode ou não ser de uma deusa perdida (ou até uma anexação de diversos deuses), uma deusa da Soberania, ligada à magia, à iniciação guerreira, vida, morte, sexualidade, fertilidade e terra, mas ainda sim diz muito sobre as crenças e devoções dos povos da Ibéria Celta, e ela foi totalmente usada pelo Cristianismo para evangelizar o espaço e apagar ou tornar reprovável qualquer resquício da fé pagã céltica na Península Ibérica.
Fonte Bibliográfica:
HOYOS, Ana Mª Vázquez – Los Posibles Cultos a la Serpiente y los Celtas en la Península Ibérica, p.349. Etnoarqueologia: 2007.
LLINARES, María del Mar – Las Relaciones entre cultura popular y Cultura Oficial: El Ejemplo de la Reina Lupa, p.57- in: Mouras, Ánimas, Demonios – El Imaginario Popular Galego – Madri: Akal Universitária, 1990.
__________________  Mouras Versus Hombres: la Imagen de la Mujer en La Cultura Popular, p.137 - in: Mouras, Ánimas, Demonios – El Imaginario Popular Galego – Madri: Akal Universitária,1990.
OLIVARES PEDREÑO, Juan Carlos – Bandua, el Protector de La Comunidad in: Los Dioses de la Hispânia Céltica -Madrid : Real Academia de la Historia : Universidad de Alicante, 2002. 

____________________________ El Dios Indígena Bandua y El Rito del Toro de San Marcos – Madri: Revista Complutum, ed.8, 1997.