terça-feira, 23 de junho de 2020

A Espera

Era ainda inverno. A primavera estava mais longe do que perto, mas ela apareceu ainda assim no meu caminho. Não vinha como a mulher jovem e primaveril que eu conhecia e tinha devoção. Ela vinha bem mais obscura, como se descansasse no seio da terra. Contudo era ela. Poderia reconhece-la em qualquer tempo e espaço, mesmo que seus rios agora fossem gélidos e me assustassem um pouco. Não eram os rios da fertilidade, eram os rios da passagem, e os lobos uivavam na planície.
Ela me pegou pela mão, sua lança e seu escudo ainda mais presentes, e caminhamos juntas de mãos dadas, como duas amigas. Ela me levou para seu monte, aquele de devoções antigas que se perderam na história. Eu fui, cabeça baixa, coração um tanto aflito. A mão que segurava a minha era quente, como a primavera que ela traria. Chegamos ao topo do monte, e a lua crescente nos cobria. E sentamos uma de frente a outra, ela tirou o capuz que cobria seus cabelos loiros. De repente, a tinha diante de mim como a conhecia; ela me sorriu, e lhe perguntei por que ela estava aqui tão fora de tempo.
“Às vezes, precisamos de um pouco de primavera no inverno. Precisamos ter a esperança de que as coisas irão passar, que a noite e o frio não durarão para sempre. Que os peixes voltarão a correr nos rios, os pássaros retornarão a fecundar a terra com seu vôo. E meus rios são mais do que fertilidade, eles são passagens. Passagens de um tempo para outro, de uma vida para a outra, pois tudo é um recomeço e a forma como vemos as coisas na maioria das vezes estão desfocadas. Eu renasço em você todos os dias. Renasço nas suas batalhas cotidianas, nas águas que correm em você em silêncio, no medo da partida, na espera da chegada. Eu guardo a entrada e a saída, e quando as batalhas se acirram, eu aumento a proteção das janelas e portas. E dou a mão para aqueles que fazem a viagem pelo rio, os levo no meu barco, como sua barqueira, os acompanhando para o outro lado, para o outro tempo, onde a vida se renova e as batalhas são vencidas. O tempo é sempre meu tempo, eu não só inicio um ciclo, eu o fecho também.”
Lágrimas rolaram pela minha face diante dela. Eu sempre me sinto uma criança diante dela, minhas proteções podem ser desarmadas, e posso ser apenas eu. Deitei a cabeça em suas pernas, ela me cobriu, como outras vezes já o fez, com sua capa de pele de cabra, e ali eu poderia descansar até que a primavera volte, e ela, Nábia, possa florir novamente os campos e inundar de fertilidade a terra. À espera de que possamos sair para as nossas justas batalhas, para o cultivo da vida e pastoreio dela. 

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