domingo, 28 de agosto de 2016

De jogos, moradas e amores


              Estar ali novamente já não era surpresa, porém a colina estava diferente; havia muitos jovens, um pouco adiante de mim, jogando um jogo de tacos que eu não entendia muito bem. Fiquei de pé olhando, eles não pareciam me ver, afinal, eu não era do seu tempo e espaço, comecei a me sentir uma espécie de invasora.
             " Gosta de jogos?"
             Assustei-me com a pergunta e ao meu lado estava ele, não mais menino e nem tão jovem, mas muito longe de ser velho, bem próximo do início da vida adulta, mas os olhos quentes e brilhantes e o sorriso eram do menino, como se ele sempre o carregasse em si, como se o menino fosse eterno.

              " Já gostei, hoje não tenho tanta certeza"
              " As pessoas se revelam bastante nos jogos, não há como se esconder quando se joga. Jogos físicos, jogos de palavras. Fazem pactos ou os quebram, aprendem ou não, são justas ou injustas. A única coisa que não dá para ser em um jogo é não ser você mesmo. Não gosta mais de conhecer a si e as pessoas, menina? Então não precisa mais de tanto sol?"
               "Não sei, eu nem sei o que estou fazendo aqui." E ele riu, riu muito, me fazendo rir também.
               " Como é engraçado o não saber, porém ainda mais é o pensar que sabe. Vamos! Quero te mostrar algo."
                E o acompanhei em uma caminhada não muito longa, havia tantas árvores frutíferas e água corrente, e o sol era alto e claro, mas sem queimar. Paramos no alto de uma colina, de onde se via uma construção circular de pedra, muito antiga.
              " Há coisas pelo qual se lutar, menina, sua identidade e sua morada são uma delas, essa é a minha morada, tive que lutar por ela, mas antes tive que saber quem sou, e sabendo quem sou, o outro não teve como negar o que é meu por direito. Esperteza? Talvez. Mas o que é nosso, onde nossa essência nasce e descansa, ninguém pode nos tirar. Descubra sua morada, descubra onde quer nascer e descansar. E continue a jogar."
              Os olhos dele brilhavam bastante, tanto quanto o sol ou os olhos de uma criança feliz descobrindo o mundo. E isso me aquecia e sorri.
              " Você muda rápido e com frequência." Comentei e ele me olhou.
              " E você não? Há sempre algo a que se desejar, sonhar e proteger. Há sempre um amor no caminho da vida, que aparece como um doce sonho e por ele devemos quebrar o determinante e se transformar, por ele ser de nenhum espaço e ser de todos. Mergulhar, ficar e alçar voo. E um amor assim é a esperança que acalenta os corações e por ele se monta exércitos, por ele se luta e busca a verdade. E deve ser escondido da destruição, deve ser protegido na estufa, com luz solar, das ambições e injustiças, porque essas sempre estarão à espreita tentando o sufocar e o matar. E eu, menina, estou aqui quando a esperança se acaba, quando o amor e os sonhos estão em risco. Sou o sol sempre jovem, sempre menino, em um riso e uma doce canção. Sou Óengus Mac Og."
             E não mais menino ou jovem, era um cisne que voou no horizonte, e a gratidão cobria meu coração. E estava de volta no meu tempo e espaço, mas sabendo que espaços e tempos são voláteis. E que algo dele brilha em mim, brilha em todos.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Descendência

            Não me surpreendi por mais um dia parar naquela mesma campina e vestida com aquelas roupas que não eram as minhas e no tempo que não era o meu, já esperava o menino aparecer com suas bochechas coradas e seus olhos quentes, mas ao invés dele veio a mim um rapaz, com os mesmos olhos, traços e gestos do menino; era ele sem dúvida, trazia na mão uma harpa dourada e sorriu sentando-se à minha frente como no dia anterior.
              " Está diferente hoje, crescido." Eu lhe falei.
             " São tão ligados à forma, mas fico feliz que já me reconheça, esse é um grande passo, um passo para a essência."
              " Linda harpa! É um instrumento com um dos sons mais lindos, como se não tivesse sido criado por humanos"
               Ele sorriu e pôs-se a tocar, e a melodia era de imensa doçura, nunca ouvira nada igual, o que torna difícil descrever por não haver comparação com nenhuma outra no meu mundo conhecido, nem no canto dos pássaros mais melódicos, apesar de lembrar muito a beleza do canto dos pássaros, porém de nenhum que de fato existisse. E a sensação que me causou também não era tão simples de ser dita, entrei em estado contemplativo, de plena beleza, como se algo nascesse dentro de mim, algo como o amor nos primeiros dias. E o sorriso e as lágrimas se misturaram na minha face.
             " Esse é um dos papéis da música, tocar os sentimentos de tal forma que seja algo primeiro. Meu pai também tem uma harpa, a dele toca as estações, as muda, as cria. Faz o mesmo com os sentimentos, com uma melodia para se alegrar, chorar e sonhar. Parecemos muito com os nossos pais, o nosso modo é apenas a interpretação da forma que eles nos deram. Meu pai dá a abundância da terra, eu dou a abundância da alma. Minha mãe nutre a terra, eu, a alma, ela é um rio, assim como eu, pode ser a vida, como a morte. Depende de que lado do rio você está. Ou crer que o amor, os sonhos e a esperança só tem esse lado encantador da bela harpa? Quando eles transbordam, às vezes eles matam, matam para nascer, não há uma face sem a outra. Quantas guerras não são capazes para minha realização?"

             Fiquei ali, parada, enquanto ele desaparecia, e em tempo, eu voltava para o agora.

Continua...

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O Nascimento

       
     
         Abri os olhos e ao meu redor estava um mundo desconhecido, não era nada desse tempo, era algo muito antigo, eu não mais me vestia com as roupas que dormira, o que ficava claro que aquilo era um sonho e o abrir os olhos era só uma metáfora para enxergar com alma.
         As minhas roupas eram completamente brancas e na minha cabeça estava uma coroa de flores primaveris, me senti meio criança vestida daquela maneira. Estava em uma belíssima colina, onde o sol nascia em uma perfeita alvorada, as sombras da noite iam aos poucos se desvanecendo e as tonalidades de rosa e vermelho enfeitavam todo o céu e um vento ameno percorria o amanhecer.
          "Foi nessa hora que fui gerado, sou semente da alvorada"
          Virei-me assustada para a voz que me falava, jurava está sozinha, mas não estava. O menino de cabelos louros, bochechas rosadas e olhos azuis se aproximou e sentou-se à minha frente.
           "Ouviu o que disse?" Assenti com a cabeça, não conseguia falar, aqueles olhos azuis eram quentes como brasa e a beleza do menino era tamanha que não podia ser humana. Ele riu, riu, provavelmente, do meu medo, era um riso tão forte e brincalhão, e acabei por rir também. "Percebe que é nessa hora que nasce a esperança no mundo? É nessa hora que as coisas tem potencial de ser?
             " Como se chama?"
             "Nomes são, realmente, importantes?"
              "Suponho que eles nos dão identidade"
              " Supõe errado. As vivências nos dão identidade. Nomes são apenas desejos, desejos e lembranças. É melhor que saiba os motivos do meu nome, do que ele próprio."
               " Sim, parece algo bom"
               " Fui gerado na alvorada e nascido no entardecer, em um dia que durou nove meses. Veja!"
               Ele colocou as mãos nas minhas têmporas, as mãos eram tão quentes, que pareciam capazes de me queimar, fui transportada para um espaço diferente, um lugar feito de pedras, escuro e frio, senti medo, muito medo, porém a luz solar entrou por uma fresta da construção, enchendo tudo de claridade e calor.

             "Viu?" A voz dele me trouxe de volta e ele ria sentado na minha frente.
            "Não vi seu nascimento"
            " Vocês nunca entendem nada. A volta da luz solar foi por muitos séculos a esperança que enchia os corações humanos. Hoje, vocês vivem no escuro e frio, mas não sabem em que ter esperança, por isso não sabem quem eu sou."
           E, simplesmente, desapareceu, o que me fez acordar, sentido em mim ainda o calor do menino.