domingo, 9 de fevereiro de 2025

Sacerdócio a Deusa Nábia

Esse texto tem como objetivo trazer um trabalho pessoal, que tenho desenvolvido para a Deusa Nábia, deusa celta galaico-lusitana, tida como uma deusa polifuncional, ela ocupou os três reinos celtas, os das águas, terra e céu, em cada um desses reinos, ela aparece com características distintas, que serão abordadas, aqui, discutindo as percepções de devoção e de desenvolvimento espiritual que Nábia nos traz. Portanto, esse texto não tem a intenção de ser um texto acadêmico, mas sim devocional.

Como é uma divindade que conhecemos apenas por achados arqueológicos e folclóricos, busquei por meios meditativos e de experiências vivenciais um meio de estreitar os laços com ela. E junto nesse texto essas inspirações com o conhecimento teórico para que se mostre à comunidade druídica a minha forma de ver e trabalhar com Nábia.

Reino d’Águas:

Começaremos pelo reino d’águas por partir do princípio druídico de cura a si, cura a comunidade e cura ao mundo. Vemos o reino d’águas como o reino das emoções e do inconsciente, como também do eterno ciclo de vida, morte e renascimento, então, ao passar por esse reino, estamos buscando a cura de nós mesmos, a cura pessoal, que se faz extremamente importante para poder partir para as demais.

No reino d’águas, Nábia é a psicopompo, é a guia das almas para o outro mundo, seja esse o mundo dos mortos, quando terminarmos essa jornada um dia, ou o mundo dos espíritos, e do nosso inconsciente, portanto, crenças e valores. Outra característica da deusa aqui, é como mãe nutridora da terra, nutridora das almas. Guia dos mistérios do nosso interior e do não-visível. Ela é o ventre da vida e o acolhimento da morte, o começo e o fim.

A comprovação de Nábia como deusa dos rios se dá por vários rios com seu nome na Península Ibérica, desde Portugal ao noroeste espanhol, entre eles: Rio Navia, Neiva, Nabão. O seu nome nos levou a prováveis palavras como navegar e navio. Sua imagem também aparece na fonte dos ídolos em Braga, Portugal. E na figura folclórica das janas, seres mitológicos, ligados às fontes de águas, uma espécie de ninfa, com poderes mágicos e de desafio aos homens, com forte conotações ao princípio de soberania celta.

Durante já o período cristão, o culto às águas e às janas se mantiveram firmes, mas com o tempo o culto delas ganharam o folclore ibérico e Nábia, os altares católicos, como santa. Em Portugal, na figura de Santa Irina de Tomar, a ocupação do rio Nabão pela lenda da santa nos dá forte indicação disso. Enquanto na Espanha a figura de Santa Marina de Águas Santas, ocupando lugares que antes foram dedicados a cultos a Nábia, e da Virgem da Lanzada com o rito de fertilidade das noves ondas na praia da Lanzada, isso nos mostra a sobrevivência contida e arma de dominação cristã da deusa. Lembrando que várias árias dedicadas a Nábia foram encontradas em templos cristãos, hoje dedicados à Virgem.

Ao mergulhar no reino d’águas, temos que estar aberto a descobrir quem somos de verdade, e isso pode demorar anos, como também não é nem um pouco fácil, lá pode se encontrar muitas dores, medos e sombras, contudo também muitas partes luminosas.

Para começar, dedique um momento do seu dia em uma meditação com Nábia, as primeiras tentativas podem ser falhas, afinal, é uma apresentação, e como uma deusa dos mistérios, as portas não estarão prontamente abertas, então dedique uma oração, faça uma oferenda de vinho, pão, poesia, dança, o que achar melhor, se mostre digno de alcançar o seu reino. Depois tenha seu propósito claro, de saber quem você é, o que te leva a essa descoberta no reino de Nábia, que talentos busca.

Ao encontrar Nábia em seu reino d’águas muitos questionamentos surgirão, porque é a busca da autenticidade, viemos ao mundo com uma pulsão tremenda de sermos, de desenvolvermos as nossas potencialidades, mas a família, a cultura, a sociedade foram nos moldados, tanto para o bem, como para o mal, tanto para a alegria, como para as dores. Adentrando no seu reino não caberá mais sermos quem não somos. Questionaremos nossos gostos, inclusive de comidas, bebidas, estilos e culturais. Questionaremos os nossos medos, quais são suas raízes, o que nos levou a eles, os nossos padrões mentais, as certezas rígidas sobre nós e o mundo. E se precisa muito que essas questões cheguem. A soberania aqui em forma de autenticidade é o que Nábia oferece nesse reino.

No mito das janas, em sua maioria das vezes, ela chegou ao seu limite e ela mergulha nas águas, e, quando ela volta de lá, não volta mais a mesma, volta modificada, com poder sobre sua vida e defesa de tudo que se é. Então nessa viagem às águas, Nábia estará disposta a nos ensinar isso, como se defender dos outros, e muitas vezes de nós mesmos. Ela, muitas vezes, durante a jornada, colocar-nos-á desafios, tanto nas meditações, como no plano material, para que reafirmamos quem somos, aparecerão decisões a serem tomadas, e tem de se pensar muito nelas antes de o fazer.

O tempo de experiência nas águas podem durar por meses, é importante repetir as meditações várias e várias vezes, isso falando de uma forma inicial, porque essa recuperação de quem somos, da nossa autenticidade soberana, provavelmente durará a vida inteira. E se escolhemos Nábia para nos ajudar nessa jornada, ela nos acompanhará, ela nos nutrirá em seu reino, ela nos dará as respostas, tem a real intenção de nos tornar em seres melhores, não apenas para nós, como para o mundo. Nábia nos dará presentes espirituais, simbólicos, potencializará os nossos dons e nos ajudará a reencontrar a nossa missão nessa vivência curta e terrena, e, um dia, mergulharemos nas suas águas para uma nova jornada no outro mundo e renasceremos novamente, no eterno ciclo.

Reino da Terra:

No reino da terra, Nábia se apresenta de duas maneiras, como o espírito selvagem da natureza, da ressurreição da primavera, do que há de pulsante no mundo, mas também ela aparece como a sentinela, a guardiã da tribo, ela é a guerreira que protege os seus, é a força da soberania na terra.

O seu nome foi encontrado em vários castros, que são construções de pedras arredondadas, dos povos da antiga Callécia, são vilas cercadas e construídas nas partes superiores, como modo de proteção. Nábia não aparece como uma deusa protetora de lares, mas sim de um povo, ela não está na chama da lareira ou na água do poço, ela está na entrada dos castros, com suas armas o protegendo, barrando qualquer invasão.

Como espírito selvagem da natureza e sua ligação com a ressurreição da primavera, temos, primeiramente, os apontamentos de Melena, que a compara com a deusa romana Diana, bem como na fonte dos ídolos a sua figura recebe a cornucópia, símbolo de fertilidade e bonança da terra, e por último uma ária de Marreco nos trouxe o 5 de abril, como uma data para sua celebração, o que a liga claramente a Primavera.

Dentro do folclore, Nábia se aproxima tanto das janas, as fadas d’águas, como das moiras, que seriam as fadas dos montes e dolmens funerários, esse ser encantado, aparece tanto na forma de jovem, quanto velha, como símbolo de vida, como de morte, isso nos mostra, uma possível troca de estações entre duas deusas na Península Ibérica, a deusa mãe Cale, associada mais ao outono e inverno e a deusa Nábia à primavera e verão.

 Entrar no reino da terra de Nábia é como se fôssemos uma jana que se encanta no fundo das suas águas, para conhecer os seus poderes, seus dons e talentos, e voltássemos pisando na terra, reconhecendo, claramente, quem somos.

O reino da terra é o reino da tribo, daqueles que nos relacionamos todos os dias, nossa família, amigos, colegas de trabalho e companheiros de espiritualidade. É o reino da ação, enquanto o das águas era da emoção, é aqui que se tece a nossa relação com o outro e essa relação pode ser de cura ou adoecimento.

Desse modo, o nosso contanto com Nábia nessa fase será de cura à tribo, e essa cura não é apenas de nós para com os outros, mas dos outros conosco. A intenção é que saibamos quem somos, como defender o nosso território, que vejamos o que tem sido destrutivo dentro das nossas relações com o outro, quais são os padrões sociais e familiares que destrói e invadem os territórios, para assim construirmos novos, que os protejam e reconstruam.

Nesse momento, temos que descobrir o que não estamos dispostos a ceder de quem somos, para mantermos a nossa autenticidade soberana preservada, o que eu tenho que dizer não, para não ser invadido ou ocupado, qual é o meu tesouro que não posso ceder, pois ele é o que me faz florir, crescer e pulsar, é a minha primavera. Quais tipos de pessoas não quero ter no meu mundo de relações mais profundas.

Essa figura de autenticidade, soberania plena, cura às relações, faz o outro buscar quem ele também é, traz bálsamo e florescimento. Nábia ajuda a proteger ao seu território e o território do outro, para que desse modo se floresça, se cresça, abunde. Esse conhecimento é uma forma de respeito às vidas com quem nos relacionamos, pois ao não deixarmos ser invadidos, também não invadimos. Ao rompermos padrões que não são nossos, que fomos ensinados, sanamos as nossas relações.

Então nesse momento, adentremos ao mundo da guerreira, sentinela, e pulsão e florescimento da primavera de Nábia, pedindo que ela nos mostre os padrões nocivos que viemos reproduzindo, que destrói a nós e ao outro, o que temos deixado nos invadir e como temos invadido o outro, quais são nossos tesouros inegociáveis, que temos deixado por tanto tempo ser saqueados.

Esteja pronto para encarar os bons e nocivos padrões familiares, esteja pronto para ser desafiado pelo lobo e pela serpente, mas também esteja preparado para descobrir muitos talentos que você não tem enxergado, muitos elementos brilhantes que carrega dentro de si e foi esquecido ou suplantado alguma vez na vida. É o momento de guerrear por si e de florescer, é o momento de expulsar os inimigos internos que tem sufocado, coberto a luz que traz a primavera, que faz as relações pulsarem e nascerem.

Reino dos Céus:

Agora que já caminhamos pelo reino d’águas e da terra, chegamos ao último reino, o dos céus, nesse reino Nábia aparece como a elevada, a rainha coroada, aquele que carrega os mistérios dos ciclos lunares e dos altos montes da Península Ibérica.

Devotos a Nábia foram encontrados em diversos montes e serras, como, provavelmente, a da Serra da Marofa, Portugal, com epíteto de Corona, em outras palavras, a coroada, portanto a rainha. Como já falado, há uma possível aproximação de Nábia com as moiras encantadas, mesmo que essas se relacionem muito mais com a deusa mãe Cale; durante um processo de assimilação cultural e religiosa, deusas e deuses foram se misturando dentro do folclore, portanto um ser encantado pode trazer características e relações com mais de um ser divino, o que nos cabe como estudiosos e devotos dos antigos deuses, é tentar retirar os véus e olhar o caminho. Dito isto, as moiras são chamadas de princesas e rainhas, por terem seus castelos no interior dos altos picos, enquanto Nábia habita o alto desses, o que, talvez, nos mostre mais uma vez, a sua possível troca de estação com a Deusa Cale.

Na fonte dos ídolos, Nábia aparece ligada ao crescente lunar e ao deus Reue, o deus celeste, cavalgador das nuvens, senhor da fertilidade e lançador de raios, trovões e chuvas abundantes. Sua ligação com a lua nos leva ao mistério da magia e a governança do céu noturno, agora mais do que o rio que corre, Nábia guia os ciclos das águas, o seu encher e esvaziar, o ciclo menstrual que dar vida a Humanidade. Ela já não é apenas o rio, ela é o todo, o mistério insondável. Ela está em toda a fonte da vida. E se ela, realmente, formar um casal celeste com Reue, vemos a união de todo o poder celeste.

O reino celeste é o reino da elevação, da sabedoria, dos mistérios divinos, é de onde se começou a vida naquela primeira explosão, é de onde se brota a primeira nota da Grande Canção, enquanto nas águas caminhamos pelas emoções, na terra pelas ações, nos céus caminharemos pelos grandes sentimentos e virtudes, que se aproximam da linda sinfonia que cria e recria o mundo, portanto cura ou adoece este, dependendo das notas tocadas.

Nesse reino, Nábia nos trará a magia e os mistérios de encher e se esvaziar, de olhar do alto, de se elevar, de entender os ciclos, as medidas necessárias. Mas de que magia estamos falando? De caldeirões e poções? Não, falamos da magia que nos liga ao todo, aquele mistério que temos que descobrir, que nasceu conosco, qual é a nosso caminho no mundo, quais são as notas que nascemos para entoar na melodia da Grande Canção, e como a Grande Canção também ressoa em nós. Cada vez que nos afastamos disso, cada vez que não tocamos as notas necessárias, adoecemos a nós e ao mundo.

Como seres cósmicos, filhos do Universo, estamos todos interconectados pela explosão que nos deu vida, como exemplos das árvores que respiram e se curam unidas em uma floresta, assim são todos os seres que habitam a Terra, tal conhecimento foi esquecido, esse é o mistério a ser revelado no contato com Nábia em seu reino elevado. É o momento de recordar os grandes sentimentos, os sentimentos que harmonizam o bem comum de todos os seres do planeta que habitamos.

Então nesse momento tenha o propósito de deixar que Nábia mostre a sua magia, deixe ela movimentar suas águas, permita que ela te mostre o caminho da sua missão como andarilho da Terra, que te ensine quais sentimentos devem guiar a sua existência para que lindas notas ressoem, e, principalmente, como viver esses sentimentos de maneira plena em comunhão com o outro.

Nábia ao ser convidada, reverenciada e honrada, entrará na nossa vida como um rio fértil, com uma pulsão forte pela vida, com uma necessidade de curar, transformar e florir a nós, os nossos e o mundo. Somos a canção do universo manifesta na Terra, se escolher Nábia como sua regente, não terá outra escolha a não ser mergulhar profundamente no todo, no mistério do ciclo eterno, no florir, morrer, renascer e crescer.

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