Este texto fez parte, inicialmente, da minha palestra na Convenção de Bruxos e Magos de Paranapiacaba, esse ano, na sala Druídica. E agora o exponho com pequenos acréscimos aqui.
A Península Ibérica,
antes da chegada dos romanos, era habitada por diversas tribos, cada uma com
suas particularidades, culturas e deuses. A maior parte do conhecimento que
temos dessas tribos não é por nenhuma forma de registro escrito por elas
mesmas; podemos entende-las pelos achados arqueológicos e escritos do dominador
romano, e posteriormente com o folclore popular e a cristianização dos
costumes. Então este é um trabalho longo e muitas vezes inconclusivo, formando
um mosaico de possibilidades.
O deus que tratamos
nesse momento foi cultuado pela tribo dos Vetões, de cultura celta, que habitou
a região que hoje compreende as regiões de Castilha e León, Extremadura e o
leste de Portugal. O culto a esse deus tem suas marcas na região de Ávila (que
também foi o lugar de maior concentração dos vetões), encontradas no município
de Candelada, junto a uma necrópole com marcas de culto a Vaélico, e também em
uma ermida de uma localidade chamada Postoloboso, hoje dedicada a um santo cuja
principal função é curar cães raivosos.
Esses achados nos
trouxeram algumas marcas de quem seria esse deus: as aras votivas de Candelada
apontam para um deus relacionado à cura e o vaticínio; porém essas mesmas aras
nos mostram um culto mais recente, da época romana, em que Vaélico, por motivos
óbvios de controle e dominação, havia perdido suas principais características.
Sabe-se que as
confrarias guerreiras da Ibéria, tanto calaicas-lusitanas quanto vetãs, possuíam
uma iniciação guerreira, e que os membros dessas confrarias tinham o costume de
passar uivando e assustando os acampamentos romanos. Portanto, os estudos para
entender Vaélico e seu papel na Ibéria Celta, anterior à chegada dos romanos,
não podem deixar de passar pelo simbolismo do lobo e os atos iniciáticos dessas
confrarias.
Qual é a relação de
Vaélico com os lobos? A principal é que seu nome diz exatamente “Deus Lobo” ou “O
Ululante”. O lobo é um animal que teve sua imagem relacionada pelos celtas e
outras tribos indo-européias à figura dos deuses guerreiros, ao Submundo ou
Outro Mundo, à noite escura, à magia e transmutação. Portanto fica-nos muito
claro que Vaélico, mais que apenas um deus da cura e oracular, é o deus do
Outro Mundo celta dos Vetões, aquele que conduz os guerreiros ao descanso
final, o deus da magia e transmutação, e o deus do furor da batalha, aquele que
reúne a alcatéia e a mantém unida, portanto o deus da iniciação guerreira.
Mas o que de fato
acontecia nas iniciações guerreiras dessas confrarias? O que se sabe é que
esses guerreiros iniciados ganhavam uma posição de elite em relação aos outros
guerreiros, que eles se ausentavam por muito tempo do resto da tribo para
passarem por essa iniciação que, ao que tudo indica, incluía imersões em
saunas, ervas, estados alterados de consciência; um verdadeiro processo mágico
em que o homem incorporava em si o furor do lobo, a licantropia.
Sauna iniciática vettona de Ulaca. Solosancho, Ávila. |
A partir desse momento
passavam a viver vidas mais ascéticas, com pouca comida, enfrentando as
adversidades do clima, e assim endurecendo o corpo físico; também passavam a
vestir cores escuras, relacionadas à noite, bem como usar objetos relacionados
aos lobos, como diversas fíbulas encontradas nos achados arqueológicos de
Numância (região à margem do Rio D’Ouro), e
Fíbula celtibérica de cabeça de Lobo. Garray (Soria)
um provável uso de máscaras de lobo, peles e dentes.
E passavam a fazer parte de um alto escalão de guerreiros, guerreiros
especiais.
Guerreiros com máscaras de lobo frente a um cadáver
de outro guerreiro ao que devoram os abutres. Estela de Zurita
Se voltarmos os nossos olhos para os outros povos celtas, encontraremos
lendas sobre confrarias guerreiras de alto escalão, como os Fianna e os
Cavaleiros da Távola Redonda. Eram guerreiros iniciados em mistérios aos quais
os guerreiros comuns ignoravam, o que nos leva os aproximar aos guerreiros de
Vaélico.
Para finalizar, esses guerreiros iniciados, os quais podemos chamar de “guerreiros
mágicos”, nos fazem levantar algumas hipóteses filosóficas: se Vaélico é o deus
do Outro Mundo, que no mundo celta está relacionado às águas, o passado e aos
antepassados, podemos pensar que o verdadeiro guerreiro mágico encontrava-se
com Vaélico entrando profundamente em seu inconsciente, conhecendo
profundamente seus medos, vencendo-os e conhecendo suas potencialidades e indo
muito além delas. É um homem que alcançou a Soberania, pois se conhece
profundamente. Sabe fazer bom uso dos seus dons e da sua fúria, usando-a com
propósito e direcionamento, reconhecendo a necessidade do bem da Tribo, como é
o caso na alcatéia de lobo. Ele morreu para o antigo homem e renasceu sob as
águas e a dedicação ao Deus Lobo.
Hoje vivemos em uma sociedade diferente da dos Vetões, dos antigos
celtas, mas nem por isso deixamos de ter nossas batalhas; elas são simplesmente
diferentes, porém encontrar-se com os ensinamentos de Vaélico ainda é muito importante.
Nas nossas batalhas ainda precisamos conhecer profundamente a nós mesmos, saber
quem realmente somos, onde começa o outro e termina o eu. Precisamos do
ensinamento do lobo que nos dá a energia necessária para lutar pelas nossas
crenças e ideais, como também o pensamento do bem maior, do lobo que não
trabalha somente para si, mas que pensa também na sobrevivência da Tribo, porque
sabe que seus atos ressoam em um âmbito maior. E para tudo isso não é demais
dizer que podemos ser um guerreiro soberano de Vaélico, o qual guarda a honra,
a lealdade e os mistérios da vida e morte em todos os âmbitos de sua existência,
ou podemos ser soldados, que seguem sem consciência, obedecendo ordens alheias
apenas pelo ato de sobreviver ou pelo seu interesse momentâneo.
Fontes Bibliográficas:
ALMAGRO-GORBEA, Martín
& SANCHÍS, Jesús R.Alvarez – La ‘Sauna’ de Ulaca: Saunas y Baños
Iniciáticos en el Mundo Céltico. Cuadernos de
arqueología de la Universidad de Navarra, Nº
1, págs. 177-254. Navarra, 1993.
GARCÍA, Gonzalo Rodrígues
– La Figura del Lobo y la Tradición Guerreira de la Hispania Céltica. Toledo,
2013;
MORENO, Eduardo Sánchez –
Aproximación a la Religión de los Vetones: Dioses, Ritos y Santuarios. Studia
Zamorensia, Nº. 4, págs. 115-147. Zamora, 1997.